fevereiro 28, 2008

A política versus Anna e Marjane

As produções francesas "A culpa é do Fidel" e "Persépolis" têm muito mais em comum do que o idioma falado: ambas têm mulheres na direção e abordam a visão de crianças sobre as transformações políticas que adentram seus lares e deixam de cabeça para baixo tudo o que elas julgavam entender sobre o mundo.
(A culpa é do Fidel!/La faute à Fidel!, 2006 - Julie Gavras)
Em "A culpa é do Fidel", a pequena Anna vive em Paris, em 1970, quando é arrancada de sua realidade pequeno-burguesa pelo pesadelo do comunismo. Pelo menos é assim que a babá cubana (que odeia Fidel Castro) explica as mudanças de comportamento dos pais da menina. A verdade é que ela vê sua casa ser "invadida" pela esposa e filha do seu tio espanhol, assassinado pelo ditadura franquista. Esse incidente mexe com os valores do pai de Anna, que viaja ao Chile após a eleição de Salvador Allende, e volta politicamente engajado, abandona o emprego, muda-se com a família para um apartamento menor e proibe que a filha frequente as aulas de catecismo. Todas essas mudanças caem como uma bomba sobre o mundinho de Anna, que passa a fazer coro com a babá contra os barbudos vermelhos.
O encantamento do filme está praticamente nas mãos da pequena estreante Nina Kervel-Bey (guardem esse nome!), que cria uma protagonista adorável, cuja curiosidade, inteligência e petulância são as armas utilizadas para defender as suas verdades. Em tempo: é o segundo trabalho de direção de Julie Gavras, filha do cineasta grego Constantin Costa-Gavras (de "Z", "Amém" e "O corte").



(Persépolis/Persepolis, 2007 - Marjane Satrapi & Vincent Paronnaud)
Em "Persépolis", o filme começa com a jovem iraniana Marjane vivendo em Paris e relembrando os acontecimentos políticos que marcaram sua infância e adolescência. Baseada nos quadrinhos da própria diretora, essa animação em preto-e-branco também concentra sua graça na inteligência da pequena e questionadora Marjane, ao tentar entender as transformações que a Revolução Iraniana provocava no seu mundinho, no final da década de 1970, com a queda da ditadura do xá Reza Pahlevi e a ascenção da república do aiatolá Khomeini. É engraçada a cena em que a garotinha diz não saber porque "está todo mundo falando mal do xá", sem entender que não existia liberdade anteriormente para tal manifestação. Mas o sonho de mudanças dura pouco, uma vez que a política do aiatolá exerce um controle também tirano sobre a população iraniana, interferindo na sua maneira de agir e vestir. E é essa dura realidade que leva Marjane ao exílio na França, aos 14 anos.
Apesar do tema forte, a história tem várias situações engraçadas, das brigas infantis às primeiras desilusões amorosas: a cena em que o "príncipe encantado" é pintado como um (quase) ogro é hilária. O filme - que foi indicado ao Oscar de animação - é a estréia em longa-metragem dos diretores e tem Catherine Deneuve e Chiara Mastroianni (mãe e filha na vida real) dublando mãe e filha na ficção. Para quem ainda não sabe o porquê do nome do filme, Persépolis era a capital do Império Persa e, em 1979, foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

fevereiro 27, 2008

"Na natureza selvagem"

(Into the wild, 2007 - Sean Penn)
Alguém poderia tentar me explicar por que esse filme foi tão esnobado pela Academia? A saga do jovem Chris (Emile Hirsch numa atuação cativante) em busca de valores e sentimentos que não encontra em casa é um soco no estômago de uma sociedade materialista, fria e dissimulada como a nossa. E o fato da atitute do rapaz ser bem radical (ir para o Alasca sem avisar a ninguém, simplesmente desaparecendo) nos dá a dimensão da sua solidão e deslocamento. Numa montagem (indicada ao Oscar) cheia de idas e vindas, acompanhamos as possíveis razões do afastamento e os grandes encontros que vão acontecendo pelo caminho do andarilho, todos fabulosos, seja pelo conteúdo dos diálogos ou pela atuação dos coadjuvantes, com destaque para Catherine Keener (a hippie), Vince Vaughn (o fazendeiro), Hal Holbrook (indicado ao Oscar de coadjuvante pelo papel do viúvo solitário), Marcia Gay Harden e William Hurt (pais do protagonista). Sean Penn - que assina roteiro e direção - fez um trabalho fabuloso com todo o elenco, que transborda emoção em cada cena com a mesma intensidade com que a natureza se revela ao longo da projeção. E o que dizer da trilha sonora? Ela literalmente nos faz mergulhar na essência da história e nos segura na poltrona até que o último crédito desapareça da tela. "Na natureza selvagem" é para ser visto e revisto e revisto e revisto e...

fevereiro 25, 2008

A (quase) perfeição do Oscar 2008

O DESEJO
A 80ª edição do Oscar foi marcada por desejos e reparações. Primeiramente, porque há tempos não se tinha uma seleção de filmes tão boa. Ao saírem os indicados, era difícil ver alguém reclamando de injustiças. Mas ainda restava aquele receio de que o desfecho da festa pudesse deixar uma ressaca danada, como acontecera tantas outras vezes e - recentemente - em 2006, quando o franco favorito "O segredo de Brokeback Mountain" foi atropelado por "Crash - No limite" já na reta final. Por essa e outras, havia um grande desejo de que fosse diferente agora. E pelo menos dois dos indicados ao prêmio máximo poderiam ganhar sem causar grandes protestos. "Sangue negro" e "Onde os fracos não têm vez" vinham dividindo o posto de melhor filme segundo a crítica (e o público também), incensando - merecidamente - o trabalho dos diretores Paul Thomas Anderson e Joel & Ethan Coen. No entanto, havia ainda a possibilidade de que "Desejo e reparação" pudesse levar a estatueta, por ser um filme de estrutura mais clássica e convencional, bem a cara da Academia. Mas mesmo essa possibilidade, não seria de todo ruim, afinal a adaptação do livro "Reparação", do escritor Ian McEwan, foi muita elogiada.

A REPARAÇÃO
Ao ganhar o prêmio de melhor ator coadjuvante, Javier Bardem abriu o caminho para a consagração do filme dos irmãos Coen. Nenhuma controvérsia, nenhum deslize da Academia aqui, visto que a irrepreensível criação do assassino da pistola de ar comprimido assustou (e encantou) o planeta, já colocando o personagem naquela galeria de criminosos inesquecíveis (?!) do cinema. E aí veio a estatueta de roteiro adaptado para "Onde os fracos não têm vez". Merecidíssima, afinal, a partir de uma história que parecia inadaptável para a telona, nasceu um filme envolvente e (in)tenso, para ficar com poucos adjetivos. A última vez em que os irmãos Coen foram ao Oscar com tantas chances de prêmios foi em 1997. O filme era "Fargo" e chegou ao Shrine Auditorium indicado em sete categorias e saiu com apenas duas estatuetas: roteiro original e atriz (Frances McDormand). Mas muitas outras boas produções deles foram injustamente esnobadas pela Academia. "Gosto de sangue (1984)", "Arizona nunca mais (1987)", "Ajuste final (1990)", "Na roda da fortuna (1994)" e "O grande Lebowski (1998) não receberam nenhuma indicação. Laureado com a Palma de Ouro, direção e ator em Cannes, "Barton Fink - Delírios de Hollywood (1991)" não ganhou nada no Oscar. O divertidíssimo "E aí, meu irmão, cadê você? (2000)" só recebeu duas indicações (roteiro adaptado e fotografia) e saiu de mãos abanando. E o competente "O homem que não estava lá (2001)" só foi indicado para fotografia. Mas em 2008, a reparação foi feita: Joel & Ethan foram eleitos os melhores diretores e "Onde os fracos não têm vez" levou o Oscar de melhor filme. É bem verdade que após a morte do caçador Moss (Josh Brolin), a história - que vinha frenética - dá uma freada brusca. Essa elipse do encontro final entre o protagonista e o assassino - que seria o ponto alto da película, em função do magnetismo dos dois personagens - é uma grande falha. A partir dali, o interesse pelo desfecho cai muito. Entretanto, pela maestria com que eles contruíram os 4/5 iniciais do filme e pelo conjunto da obra dos Coen, valem as estatuetas.

E OS NOVOS ESTRAGOS
Pena mesmo é que "Sangue negro" tenha ficado somente com ator (Daniel Day-Lewis) e fotografia. Outra injustiça foi "Desejo e reparação" levar apenas trilha sonora. Aliás, acho que o filme merecia ter sido indicado em - pelo menos - outras três categorias: diretor (Joe Wright), ator (James McAvoy) e atriz (Keira Knightley). Também não concordei com o prêmio para atriz coadjuvante: Tilda Swinton está apenas correta em "Conduta de risco" e a estatueta me pareceu um consolo para o filme de Tony Gilroy. Deveria ter sido Cate Blanchett, por "Não estou lá" ou - até mesmo - Saoirse Ronan, por "Desejo e reparação". Todos têm falado muito de Javier Bardem no filme dos irmãos Coen, mas a atuação de Josh Brolin não deixa nada a desejar em relação à do ator espanhol. E, é claro, seu nome tinha de constar entre os indicados. Também não faço parte do grupo que tem incensado o roteiro de "Juno". Em nenhum momento, a história da adolescente que não soube evitar uma gravidez, mas que é supermadura para lidar com a doação do filho para um casal estéril, conseguiu me convencer e emocionar. A naturalidade com que a família da garota entende e aceita tudo é inverossímil. "Sweeney Todd - O barbeiro demoníaco da Rua Fleet", do Tim Burton, merecia ter levado o prêmio de figurino e poderia ter recebido indicações para maquiagem (ao invés dos batidos "Piratas do Caribe 3" ou "Norbit"), direção e filme (ambas no lugar de "Juno").
PS: E viva Marion Cotillard! Com todo respeito a Julie Christie, mas essa francesa é a razão de ser de "Um hino ao amor". Sem ela, o filme desafinaria.