agosto 29, 2008

"Quando estou amando"

(Quand j'éstais chanteur, 2006 - Xavier Giannoli)
É impressionante a produtividade de Gérard Depardieu. Só para se ter uma idéia do quanto esse ator trabalha, ele está envolvido atualmente, segundo dados do IMDb, em 12 projetos, entre as fases de pré-produção e finalização. Pena que o que chega a estrear nas salas brasileiras seja tão pouco, ficando muitas vezes restrito a blockbusters como “102 dálmatas” (2000) ou comédias (de gosto duvidoso) como “As férias da minha vida” (2006) e “RRRrrr!!! Na idade da pedra” (2004). Ainda assim, nos últimos dois anos, foi possível vê-lo em um dos curtas do ótimo “Paris, te amo” (2006), em que ele também ataca de co-diretor, e no bom “Piaf – Um hino ao amor”, numa ponta como o empresário que descobriu Edith.
“Quando estou amando”, em cartaz no Brasil, é um outro exemplo do belo trabalho desse francês que tem mais de uma centena de filmes no currículo, com trabalhos magníficos como “1900” (Bernardo Bertolucci, 1976), “Meu tio da América” (Alain Resnais, 1980), “Danton - O processo da revolução” (Andrzej Wajda, 1983), “Jean de Florette” (Claude Berri, 1986), “Camille Claudel” (Bruno Nuytten, 1988), “Linda demais para você” (Bertrand Blier, 1989) e “Cyrano de Bergerac” (Jean-Paul Rappeneau, 1990), pelo qual foi indicado ao Oscar de melhor ator. Falar tanto de Depardieu no início dessa matéria se justifica: a sua presença tem tudo a ver com a graça e o encanto que embalam o público nesse novo trabalho. Claro que a beleza e o talento da atriz Cécile De France (“Um lugar na platéia” e “O albergue espanhol”) também ajudam muito.
Alain Morreau (Depardieu) é um famoso cantor de bailes, muito conhecido nas casas de shows do interior da França, freqüentadas por velhos corações solitários. Apesar disso, a carreira está em curva descendente, tanto que a presença de jovens nos salões é festejada como sinal de renovação. E é exatamente a visão da deslumbrante Marion (De France) que vai sacudir a vida dele, mais pessoal do que profissionalmente falando. Ela está ali acompanhando o chefe e amigo Bruno (Mathieu Amalric, de “O escafandro e a borboleta”). Encantado por Marion, o cantor parte para a conquista. Resistente a princípio, a jovem acaba descobrindo no velho astro da música francesa, um companheiro para as desilusões e amarguras que ela vem vivendo.
Estabelece-se entre os dois uma relação cordial, ainda que Alain – um eterno sedutor – esteja a fim de algo mais intenso. Para mantê-la por perto, ele contrata seus serviços como corretora de imóveis, embora fique claro que um novo lar não é uma necessidade real. Na verdade, o coração do músico é a casa que ele quer ver habitada e decorada novamente. O filme não entra em detalhes sobre os motivos do fim do casamento de Marion, mas mostra as dores e as seqüelas que a ruptura deixou. Não demora muito para que o cantor perceba que essa instabilidade emocional da moça, cuja relação com o filho de seis anos tem prioridade sob todas as coisas, é um empecilho praticamente intransponível para a aproximação que ele procura.
A atuação de Depardieu é tão segura, intensa e convincente, que não causa estranheza em momento algum que seu personagem, velho, gordo e decadente, consiga envolver a bela Marion. Não bastasse isso, o ator ainda canta boa parte da trilha sonora que resgata clássicos absolutos da música popular francesa, sucessos de Serge Gainsbourg, Charles Aznavour, Michel Delpech, Jean-Michel Rivat e Christophe, dentre outros. Preste atenção na seqüência em que Bruno pede que Alain cante uma música lenta para dançar com Marion. A mistura de ciúme e dor expressa no olhar do cantor é o exemplo perfeito de como construir um grande personagem e uma cena igualmente memorável: a canção escolhida é uma versão de “Save the last dance for me”, dos norte-americanos Doc Pomus e Mort Shuman. Sem sombra de dúvida, Depardieu encontrou em Alain Moreau e Cécile De France, o papel e a atriz perfeitos para dar vazão ao seu inquestionável e imensurável talento.

agosto 22, 2008

"Lemon tree"

O eterno conflito entre israelenses e palestinos já rendeu filmes fortes e tocantes, como o documentário “Promessas de um mundo novo”, de 2001, em que o assunto é tratado a partir do ponto de vista de sete crianças. Ou “Paradise now”, de 2005, com dois homens-bombas sendo questionados sobre os significados e conseqüências de um novo atentado suicida. “Lemon tree” discute a questão novamente, dessa vez a partir de um incidente inusitado (baseado em fato real) e sob a perspectiva feminina.
Salma Zidane (Hiam Abbass) é uma viúva palestina e vive da venda das conservas de limão que produz em casa. Os frutos são colhidos no próprio pomar, plantado pelo pai há mais de 50 anos. O problema é que o limoal também fica ao lado da mansão do ministro da Defesa de Israel, seu mais novo vizinho, e o Serviço Secreto decide que os limoeiros devem ser arrancados por questão de segurança. O terreno é considerado perigoso, podendo servir de esconderijo para ataques terroristas. Mas a coisa ganha vulto quando Salma resolve entrar na justiça para garantir a permanência das árvores que simbolizam sua subsistência e suas raízes. Para a empreitada, ela consegue o apoio do jovem advogado Ziad (Ali Suliman) e está disposta a ir até o fim pelos seus direitos.
Eran Riklis (“A noiva síria”, 2004) poderia ter feito um filme focado (apenas) na questão política, com a batalha judicial representando o enfrentamento das nações rivais. Mas ainda bem que ele foi mais longe. Além da personagem central, o roteiro - assinado pelo diretor e por Suha Arraf - nos entrega outra figura forte e relevante: Mira Navon, a esposa do ministro israelense, interpretada com propriedade pela estreante (e que estréia!) Rona Lipaz-Michael. Sem trocar uma palavra (até por causa da barreira da língua: uma fala hebraico e a outra, árabe), seus olhares - através da cerca que separa suas casas e vidas - falam de cumplicidade e entendimento. Apesar de estarem em lados e situações opostas, elas são mulheres e têm muito em comum: ambas estão longe dos filhos, carregam carências afetivas e vivem sob o mesmo jugo machista. E é esse viés sociocultural que concede grandeza a “Lemon tree”.
Há uma infinidade de contrastes nesses dois universos femininos (como existe também entre os povos que as duas mulheres representam). Uma vive cercada de luxo e segurança (guarda-costas, câmeras e guaritas), à sombra do marido poderoso e sua única preocupação é com a festa de inauguração da mansão ao lado do pomar da discórdia. Já a outra mora sozinha num casebre simples, sem nenhum conforto e tem de dar um duro danado para complementar, com as compotas de limão, a ajuda de US$ 150 que um dos filhos lhe envia dos Estados Unidos. Ainda assim, entre elas se estabelece um clima de afinidade e respeito. E se dependesse das duas, as arestas seriam aparadas de maneira mais simples e cordial. Como na cena em que Salma vira bicho ao ver soldados israelenses colhendo seus limões sem que ela fosse consultada. A viúva considera aquela invasão um ultraje e Mira a compreende, devolvendo-lhe um sensato pedido de desculpas.
Analisando com calma, há razões pertinentes nas atitudes de ambos os lados dos limoeiros. No entanto, é curioso (e sintomático do abismo entre judeus e palestinos) que os vizinhos se enfrentem nos tribunais sem nunca terem conversado sobre o impasse que os aflige. Parece assim que, ao retratar o pomar como uma metáfora da disputa de terra que se arrasta há mais de dois séculos, “Lemon tree” levanta a bandeira de que a intransigência e a falta de diálogo só podem levar ao caos. E a seqüência final é exemplar: terreno de discórdias não dá frutos e a felicidade não pode florescer num lugar tão estéril.
Em tempo: a escolha do elenco foi muita acertada. Da protagonista aos coadjuvantes, o que vemos são atuações comoventes, convincentes e arrebatadoras. Com uma turma assim, fica impossível não mergulhar nessa história de interesses, intolerância e solidão.

agosto 15, 2008

"Era uma vez..."

(Era uma vez..., 2008 - Breno Silveira)
A idéia de fazer um filme que explorasse os contrastes sociais do Rio de Janeiro nasceu em 1987, quando Breno Silveira era o câmera do documentário “Santa Marta: Duas semanas no morro”, de Eduardo Coutinho. Ele então quis comprar os direitos de “Cidade de Deus”, mas Paulo Lins já os havia vendido para Fernando Meirelles. Breno sugeriu ao autor que escrevesse uma outra história. Alguns anos depois, surgia o embrião de “Era uma vez...”, uma versão mais dura e violenta do que a que chegou às telas há duas semanas.
Era para ter sido a estréia de Breno Silveira na direção de um longa-metragem, mas a história de amor entre um garato sangue-bom do Morro do Cantagalo e uma patricinha da Avenida Vieira Souto, explorando a desigualdade social como obstáculo à união do casal, não entusiasmou os produtores e o diretor acabou debutando nas telonas com a biografia da dupla sertaneja Zezé di Camargo & Luciano, um estrondoso sucesso de bilheteria, o maior público pós-retomada do cinema nacional (1994), com mais de 5 milhões de espectadores. Esse número quebrou as resistências iniciais e abriu os cofres para que “Era uma vez...” saísse do papel. No entanto, repetir (ou ultrapassar) as marcas do primeiro filme será uma façanha. E a disputa começou com desvantagem para esse Romeu-e-Julieta carioca, que estreou em apenas 89 salas, contra as 351 à epoca do lançamento de “2 filhos de Francisco”.
Dé (Thiago Martins) é um morador do morro que trabalha num quiosque de cachorro-quente em Ipanema, localizado exatamente na frente do edifício em que mora Nina (Vitória Frate), por quem é platonicamente apaixonado, apesar dele ser invisível para a moça. Uma desilusão amorosa daqui, um certo atrevimento dali e os dois ficam juntos. Se o amor parece ser suficiente para transpor o abismo sociocultural que os separa, as diferenças apontam para o precipício. Um acordo entre traficantes e policiais corruptos expõe o flanco da triste e tão conhecida realidade brasileira e coloca os pombinhos numa arapuca. Só há chance de escapatória para os dois se a intolerância e o preconceito forem vencidos.
Além da violência, da pobreza, do tráfico e da corrupção, os rumos do romance de Dé e Nina também são influenciados por outras histórias de amor: a dos três irmãos, a da mãe favelada e o filho trabalhador, a do pai viúvo e a filha única. É essa teia de sentimentos que humaniza os personagens, não deixando que os rótulos de mocinho e vilão grudem definitivamente em qualquer um deles: o bem e o mal estão em todo mundo e fazem um rodízio à medida que os conflitos vão surgindo. Com certeza, esse é um dos grandes trunfos do roteiro, que consegue emocionar em muitos momentos, intercalando as belezas e as mazelas do Rio e traçando um panorama cruel e comum a qualquer metrópole do mundo.
Não há como negar que a atuação de Thiago Martins é a alma do filme. Seu personagem convence em todas as cenas, indo da delicadeza à ira com a mesma segurança. Isso prova que o jovem ator - que segue morando numa favela e é integrante do grupo “Nós do Morro” - estava certo ao batalhar pelo papel que o diretor se negava a entregar a ele, por considerá-lo galã demais (para quem não se lembra, ele participou de novelas globais como “Belíssima” e “Da cor do pecado”). Se o problema era esse, Thiago foi para o quarto teste de cabelo raspado, com a pele tostada de sol, a cara cheia de espinhas e deu no que deu. Bendita persistência! Outro destaque do elenco é Cyria Coentro. Com larga experiência no teatro e participação em novelas e minisséries, a atriz surpreende ao criar uma mãe que faz de tudo para manter os filhos no bom caminho, impregnando de verdade seu silêncio, suas explosões, seu amor e seu desespero.
Além de realçar as emoções, a música de “Era uma vez...” revela mais sobre a vida e os sentimentos do seu personagem central. Assim, para mostrar o universo de Dé, o filme começa com “Vide Gal”, do baiano Carlinhos Brown, na voz da carioquíssima Mart’nália (“Se tenho fome, como logo o Pão de Açúcar / Urro no Morro da Urca / Se quero abraço, tenho o Cristo para me abraçar”). Num momento romântico de um baile funk, Claudinha e Bochecha cantam “Fico assim sem você”, uma declaração de amor que poderia perfeitamente sair dos lábios do enamorado Dé (“Neném sem chupeta / Romeu sem Julieta / Sou eu assim sem você”). Mas nada supera a inédita “Minha rainha”, escrita por Manacéa, da Velha Guarda da Portela, e interpretada por Luiz Melodia (“Eu sonhei que era rei e você, minha rainha / Quando acordei, verifiquei que você não era minha / Meu coração quase parou de dor / Mas consegui te conquistar, meu grande amor”). A canção parece ter sido composta para o longa, mas foi uma sugestão de Marisa Monte, retirada dos seus arquivos de pesquisa sobre samba. E durante os créditos finais, ainda é possível ouvir a pungente “Uma palavra”, parceria inédita da cantora com Brown e Arnaldo Antunes.
O fato das filmagens terem sido realizadas totalmente em locação imprime mais veracidade ao que vemos. O que também pode ser dito sobre os cenários e figurinos, uma vez que a produção contou com a valiosa “consultoria” da comunidade, valendo-se de móveis e roupas dos próprios moradores. E o que dizer da fotografia? As imagens encantadoras de Ipanema feitas a partir das lajes do Cantagalo ilustram muito bem o contraste que o roteiro de Patrícia Andrade quis discutir, além de gerar cenas inesquecíveis, como aquela em que Nina compara as janelas dos barracos do Vidigal a um céu de estrelas ou uma outra em que Dé abre os braços, tendo o Morro Dois Irmãos ao fundo, numa alusão nítida ao Cristo Redentor. Por isso, apesar da fatalidade e do pessimismo reinantes na fábula de Breno Silveira sobre a Cidade Maravilhosa, “Era uma vez...” é, ainda assim, uma declaração de amor ao Rio de Janeiro. Que o digam as reticências do título que, somadas ao “final depois do final”, parecem instigar o povo brasileiro a escrever uma outra história.

agosto 08, 2008

"As aventuras de Molière"

(Molière, 2007 - Laurent Tirard)
Seguindo os conceitos do personagem retratado em seu filme, o diretor Laurent Tirard entrega uma comédia deliciosa que arranca risos ao criticar a futilidade dos nobres da corte francesa do século XVII, enquanto enaltece sentimentos e discussões mais relevantes nas entrelinhas. Apoiado ainda nas atuações de um elenco inspirado e na montagem que mantém o ritmo da primeira à última cena, fica fácil entender porque as “As aventuras de Molière” vem seduzindo o público.
Para falar desse patrimônio da cultura da França, Tirard optou por fazer um recorte e focar sua narrativa nos 13 anos que antecedem a consagração de Molière, exatamente o período de controvérsias entre seus biógrafos. O filme começa com o personagem em conflito diante das suas peças, por considerar a comédia uma arte menor. Mas logo recua no tempo e mostra sua prisão em função das dívidas contraídas (e não-pagas) para manter o grupo de teatro. Tudo vai mal até a aparição de Monsieur Jourdain, um fidalgo bobalhão (Fabrice Luchini, de “O joelho de Claire” e “Confidências muito íntimas”) que compra sua liberdade a troco de aulas de interpretação. Sem alternativa, Molière (Romain Duris, de “Albergue espanhol” e “Em Paris”) aceita a inglória missão. Ao se embrenhar na casa e na vida da família Jourdain, o comediante vai se deparar com todos os ingredientes que servirão de inspiração para suas encenações futuras, além de encontrar na senhora Jourdain (Laura Morante, de “O quarto do filho” e “Medos privados em lugares públicos”) o incentivo para o amadurecimento dos seus escritos.

Com figurinos e direção de arte primorosos, fica fácil embarcar nessa viagem de sátiras, sendo mais do que justo ressaltar a química avassaladora existente entre os atores Romain Duris, Fabrice Luchini e Laura Morante. Quando dois deles (ou os três) estão juntos em cena, a história ganha seus melhores momentos, com atuações preci(o)sas que, inevitavelmente, provocam gargalhadas e suspiros. Mas, sem sombra de dúvidas, é Luchini o grande destaque do filme. Sua interpretação afetada é perfeita para ridicularizar o personagem que é uma caricatura da burguesia rica e inculta. Romain Duris também surpreende ao construir um Molière no limite entre o palhaço e o gênio.
Mas o sucesso de “As aventuras de Molière” merece um crédito especial: o roteiro de Laurent Tirard e Grégoire Vigneron é primoroso, com diálogos inteligentes, espirituosos e ágeis. Dessa forma, tudo o que vemos é relevante e não dá para tirar os olhos da tela sem correr o risco de perder uma ótima piada, como na cena em que Molière zomba das relações burguesas, imitando os trejeitos do seu fidalgo credor ao ser ludibriado por um membro da nobreza parisiense. E olha que os roteiristas ainda encontraram espaço para subtramas envolvendo amores adolescentes, casamentos arranjados, paixões proibidas, dilemas morais e morte, tudo conduzido com propriedade pela belíssima trilha sonora de Frédéric Talgorn.
Por falar em paixão, não posso terminar esse texto sem dar a devida atenção à caracterização de Laura Morante para Elmire Jourdain. Desde sua primeira aparição, é possível perceber a mistura de sensibilidade, força, inteligência e sensualidade daquela mulher. Ela é a antítese do marido e a musa do escritor incipiente. A admiração que se instala entre eles já na primeira parte do longa é responsável por um momento memorável: a montagem paralela das confissões dos dois diante de um espelho. Uma saída brilhante para viabilizar uma situação impensável devido às posições sociais tão díspares do casal. Ou seria aquela película refletora uma janela para os sonhos que (quase) nunca se realizam?

agosto 04, 2008

"Do outro lado"

(Auf der anderen seite, 2007 - Fatih Akin)
Yeter se prostitui na Alemanha para pagar os estudos da filha Ayten em Istambul. Ameaçada por radicais muçulmanos, deixa as ruas e aceita morar com o cliente Ali, um viúvo turco cujo filho Nejat é professor de literatura numa universidade de Bremen. Nejat vê aquela união com desconfiança, mas decide partir para a Turquia em busca de Ayten, depois de um problema com Yeter e uma briga com o pai. Acontece que Ayten é uma ativista política que protesta contra a corrupção e a desigualdade social em seu país. Ao ver os companheiros sendo presos, foge para Bremen, onde conhece Lotte, uma estudante alemã de classe média que resolve abrigá-la. Lotte mora com a mãe, Susanne, que não gosta nem um pouco daquele envolvimento da filha ariana com uma desconhecida turca. É essa ciranda de desencontros e diferenças que faz girar a trama de “Do outro lado”, do diretor Fatih Akin, o mesmo de “Contra a parede”, ganhador do Urso de Ouro em Berlim em 2004.
No meio de todas as reviravoltas desse novo filme, Akin (ele próprio, um alemão filho de pais turcos) parece querer falar mesmo sobre a angústia do não-pertencer. Todos os personagens parecem deslocados onde quer que se encontrem: a prostituta gostaria de estar perto da filha, a militante não aceita a cruel e injusta realidade do seu país, o mestre abandona as aulas em Bremen para cuidar de uma livraria alemã em Istambul, a estudante germânica se manda para a Turquia em conflito com a mãe... Mas é exatamente quando estão à procura do outro que os personagens conseguem encontrar a si mesmos. As cenas que mostram dois caixões no aeroporto de Istambul, sob o mesmo ângulo e em momentos distintos, traduzem com simplicidade e eficiência essa percepção e entendimento do que é estar do outro lado, na pele de outra pessoa.
Ao apontar suas lentes para esses sentimentos, o diretor nos entrega um filme comovente, apresentando tipos duros e cruéis sob determinados pontos de vista, mas que nunca são inflexíveis. Assim, é curioso ver como os acontecimentos vão mexendo com seus valores, provocando uma reação que faz abrir os olhos, rever atitudes e resgatar uma essência que parecia perdida. A câmera próxima ao rosto e ao olhar dos atores contribui para que o público enxergue as verdades que estão sendo reveladas e acredite nelas. E é isso o que importa no filme de Akin: as revoluções interiores têm muito mais relevância do que os acontecimentos externos. Prova disso é que dois segmentos do filme ganham títulos que anunciam a morte de personagens que ainda serão apresentados. Anti-clímax? De jeito nenhum. O espectador sabe que a tragédia anunciada irá explodir muitas convicções e provocar mudanças importantes.
Além de ser um filme que emociona ao abordar assuntos como conflito de gerações, solidão na velhice, sonhos frustrados, arrependimentos e reconciliações, “Do outro lado” incomoda ao fazer sua crítica social à intolerância, ao preconceito e à falta de solidariedade, exatamente no momento em que o controle da entrada de imigrantes torna-se mais intenso na União Européia. Mas não pense que Fatih Akin joga a bomba apenas no colo dos alemães. Além dos políticos corruptos, também a justiça turca é criticada no longa. E a conseqüência das intransigências tanto de uns quanto da outra podem ser conferidas numa seqüência importante protagonizada por um grupo de adolescentes turcos.
O belo e engenhoso roteiro de “Do outro lado”, assinado pelo diretor e premiado em Cannes em 2007, encontra suporte inestimável na edição de Andrew Bird: os vários dramas se misturam para construir uma história maior e - em muitos momentos, durante a projeção - é possível perceber um detalhe já mostrado anteriormente, o que acaba contextualizando e dando mais significado à nova cena. É assim, por exemplo, que percebemos que a última seqüência do filme é a continuação imediata da primeira cena que vimos. E que tudo o que acontece entre elas serve para justificá-las. Diga-se de passagem, o desfecho de “Do outro lado” é de uma plasticidade e significado dignos das grandes obras do cinema. De modo que, não teria sido absurdo, se o filme - indicado também à Palma de Ouro no ano passado - tivesse levado o prêmio. Vale dizer ainda que o elenco do longa está afinadíssimo, com destaque para Tuncel Kurtiz (Ali), Nursel Köse (Yeter) e Hanna Schygulla (Susanne), musa de Rainer Werner Fassbinder em “O casamento de Maria Braun”.

Três filmes e seis pequenas histórias

A infância é o alvo de três produções que deixaram as férias mais divertidas para adultos e crianças. Seja pela ingenuidade ou pela magia das situações retratadas, tanto o brasileiro “Pequenas histórias”, de Helvécio Ratton, como os franceses “O balão vermelho” e “O cavalo branco”, de Albert Lamorisse, encantam todos os públicos, arrancando risadas e suspiros ao iluminar as salas com suas belas histórias.
(Pequenas histórias, 2008 - Helvécio Ratton)
Como o próprio nome indica, “Pequenas histórias” reúne quatro pequenos contos para compor uma colcha de retalhos sobre as lendas e causos brasileiros, costurada por Marieta Severo, subaproveitada como uma narradora que, presa a linhas e bordados, acrescenta pouco à trama. Patrícia Pillar é a sereia da primeira história, que se casa com um pescador, ajudando-o a melhorar de vida (pelo menos enquanto ele cumprir uma promessa feita antes da união). Na sequência, que conta com a participação da ex- Frenéticas Edyr Duqui, temos as desventuras de um coroinha às voltas com as assombrações da Procissão das Almas, numa cidadezinha do interior mineiro. O terceiro segmento traz Paulo José vivendo um Papai Noel que se mete numa encrenca, é procurado pela polícia e encontra num garoto de rua o verdadeiro espírito do Natal. Por fim, o último (e o mais engraçado) episódio tem Gero Camilo vivendo um sujeito cujo nome dispensa apresentações: Zé Burraldo. A cena em que ele participa de uma montagem mambembe de “A Dama das Camélias” é verdadeiramente hilária. Ratton amarra tudo com um humor simples e ingênuo que pode até não arrebatar a criançada (acostumada às pirotecnias das produções atuais), mas com certeza vai conquistar os adultos saudosistas.
(Le ballon rouge, 1956 - Albert Lamorisse)
Aliás, saudosismo está na pauta do dia. Recentemente, a Pandora Filmes relançou dois clássicos do cinema francês dos anos 50, dirigidos por Albert Lamorisse, que estão sendo exibidos numa única sessão com duração de pouco mais de uma hora. O primeiro é “O balão vermelho”, em que um garoto (vivido pelo filho do próprio diretor) encontra um balão bem colorido nas ruas de uma Paris cinzenta para descobrir, logo em seguida, que aquela bola flutuante o seguirá por toda parte, mesmo quando ele não a está segurando, obedecendo, inclusive, suas ordens. Praticamente sem falas, esse média-metragem encanta ao retratar de forma bem lúdica os conflitos e descobertas da infância em relação às normas e condutas do universo adulto, às perdas, ao primeiro sinal de uma paixão... As cenas em que o balão “vinga” seu dono ao perseguir o diretor da escola que o deixou de castigo remetem ao humor chapliniano, em que trejeitos, rodopios, saltos e caretas são as estrelas do riso. A seqüência em que um grupo de garotos persegue nosso protagonista e seu “balão de estimação” com pedras e bodoques pelos becos labirínticos da cidade também é digna de nota. E o desfecho, com uma multicolorida revolta de balões, é inesquecível e encerra em grande estilo a película que ganhou a Palma de Ouro em curta-metragem e o Oscar de roteiro original (até hoje único no formato), batendo “La strada”, obra-prima de Fellini, que acabou levando a estatueta de melhor produção estrangeira.
(Crin blanc: le cheval sauvage, 1953 - Albert Lamorisse)
O outro filme de Lamorisse é “O cavalo branco” e tem como protagonista também um garoto, que se encanta pelo animal do título depois de vê-lo escapar sem se deixar domar pelos poderosos fazendeiros da região. Mais do que desejar a posse do cavalo, o menino (que mora num casebre, às margens de um pântano, com o avô e o irmão menor) quer compartilhar daquela sensação de liberdade, para trilhar seus próprios caminhos, sem laços, fronteiras e cercas que o prendam àquela rotina miserável e sem perspectivas em que vive. Ao capturar imagens dos cavalos em franca disparada ou numa briga pela liderança do bando, o filme ganha nuances de documentário, tendo sido inclusive indicado ao BAFTA nessa categoria. Mas com certeza, é a mistura de poesia e realismo que transforma essa história de amizade, entrega e superação numa aventura emocionante com um final surpreendente e arrebatador. “O cavalo branco” levou ainda o Grande Prêmio de Curta-metragem do Festival de Cannes.