Por mais que as referências a “Édipo Rei”, de Sófocles, sejam gritantes, são o sertão e os sertanejos de Guimarães Rosa que estão no campo de visão do “Olho de boi”, do diretor Hermano Penna. O filme começa com o comunicado de uma revelação. Vemos a cena refletida no olhar de um bovino confinado. Corte para o animal entrando no corredor que o levará ao abate. O nervosismo do bicho parece revelar o conhecimento da sua sina, que ele encara com bravura, seguindo em frente, ao invés de empacar. Novo corte. Homem desce a marreta. Entra o som de um mugido, que se funde com o de uma trovoada. Escuridão na tela.
A seqüência seguinte já mostra dois vaqueiros cortando a noite sob uma chuva torrencial e buscando abrigo numa igreja abandonada. É ali, sob os escombros do que um dia foi um altar, que os homens começam a falar de fé, verdade, traição, mágoa, vingança e morte. Ainda que o cinema inteiro queira ouvir os detalhes da tal revelação anunciada nos primeiros minutos, é dos sentimentos, pesares, medos e (des)crenças de cada um que ficamos sabendo. Quanto mais eles conversam, mais o universo de Rosa nos vem à cabeça. A cena tem uma fotografia maravilhosa (e é um dos destaques do longa), revelando pouco a pouco os detalhes do ambiente, na medida exata em que os personagens vão acendo lamparinas e velas e jogando luz sobre seus pensamentos.
A câmera quase não se move: é importante registrar o olhar daqueles homens, a contração dos músculos faciais, as dores que as explosões de vozes e sentenças expõem. Aos poucos, o público fica sabendo quem eles são: Modesto e Cirineu, padrinho e afilhado, traído e delator, ateu e temente, igualmente cegos por causa das angústias que carregam. Enquanto um tateia os móveis e imagens do templo, o outro desfia suas mágoas. “Inimigo não trai, fica à espreita, esperando a hora. Só amigo trai”, diz Modesto. “Traição é morte que humilha”, completa. O vermezinho da vingança corroendo as entranhas de um homem desesperado, de um marido desconsolado. A infidelidade da esposa (Angelina Muniz) e a deslealdade do irmão (Cacá Amaral) comprimem seu coração e provocam uma tempestade de palavras que ora saem aos gritos,ora sussurradas. Dali até o momento da tocaia que deve por fim à vida do traidor, muitas confissões, de parte a parte, vão humilhar e provocar os dois vaqueiros.
“Olho de boi” é um filme curto (72 minutos apenas), com elenco pequeno e pouquíssimos cenários. No entanto, as palavras são infinitas, os diálogos ininterruptos, as emoções crescentes e o resultado grandioso. É quase teatro. Os conflitos que vão atiçando os ânimos daqueles sertanejos acabam revelando-se mais intrigantes do que o desfecho daquela longa noite de espera. Sem falar que, aqui e ali (e por isso há que se assistir ao filme atento a todos os detalhes), são lançadas pistas sobre o que está por acontecer. Como na cena em que Cirineu é instigado pelo padrinho a falar alguma coisa para a imagem do Cristo com os olhos raspados que jaz na casa de Deus que lhes serve de abrigo . Suas (poucas) palavras têm endereço mais específico do que se imagina então. O fato é que, como o boi do início do filme, aqueles dois homens seguem resolutos no seu caminho de desvario e vingança. Ainda que em alguns momentos, as incertezas e a proximidade da morte queiram esfriar os ânimos, eles vão até o fim. Porque se a cruz que Modesto tem de carregar até o alvorecer é pesada, como confirmam seus lamentos, ela também é do afilhado, que está ali - como o Cirineu bíblico - para ajudar a levá-la.

Mas apesar de todo o mérito do roteiro (merecidamente premiado no Festival de Gramado), essa história não faria sentido sem a atuação de dois atores fabulosos. Genézio de Barros e Gustavo Machado (que também levou seu Kikito de Ouro) são os intérpretes perfeitos para encher de vida o texto primoroso do roteirista Marcos Cesana. Eles mergulham de tal maneira nos personagens, que as falas, resmungos e filosofices brejeiras soam absolutamente espontâneas e verdadeiras, como se Modesto e Cirineu existissem, fossem de carne-e-osso. Outro acerto é a concepção da trilha sonora, assinada pelo Duofel, formado pelos violonistas Fernando Melo e Luiz Bueno, que estão na estrada há mais de 30 anos e já percorreram todo o interior do país (sozinhos e acompanhando músicos como Zé Geraldo e Tetê Espíndola). Com um trabalho assim, consolidado e repleto da riqueza e diversidade cultural brasileira, compor as canções que embalam essa vendeta foi muito natural. Depois de assistirem ao filme com o diretor e o montador, eles gravaram as músicas ao vivo, como na época do cinema mudo, à medida em que iam vendo as cenas, praticamente sem edição, reforçando a atemporalidade e a indefinição espacial da trama.