setembro 05, 2008

"Encarnação do demônio"

(Encarnação do demônio, 2008 - José Mojica Marins)
A trilogia do Zé do Caixão, célebre personagem (e alter-ego) de José Mojica Marins, começou em 1964, com “À meia-noite levarei sua alma”. Três anos mais tarde, ele lançou “Esta noite encarnarei no teu cadáver”. Depois de 40 anos, a parte final chega ao grande público, respaldada pelo sucesso que as antecessoras conquistaram. Porque se já considerada trash, hoje a filmografia de Mojica é cult(uada) no mundo todo. Assim, “Encarnação do demônio” vem com o desafio de dar continuidade a uma saga consagrada. E não deixa a desejar! Está nesse terceiro filme, tudo o que se espera de uma produção de Coffin Joe (como o diretor é conhecido internacionalmente): mulheres nuas, sadismo, bichos escrotos, mortes horripilantes e muito sangue.
Para justificar a demora entre as duas últimas partes dessa tríade cinematográfica, o roteiro já aponta uma resposta. A história começa com Josefel Zanatas, nome de batismo (?) do Zé do Caixão, sendo libertado, depois de quatro décadas atrás das grades. Aliás, essa sequência é exemplar: a cólera e os gritos do delegado (Luís Mello, o Satanás de “O auto da compadecida”), misturados ao aparente medo dos seus subalternos e ao jogo de luz-e-sombra ao longo do corredor que leva até o prisioneiro, criam o suspense perfeito para que o sanguinário coveiro entre em cena de forma magistral, na penumbra, de capa e cartola pretas. Fica claro, nessa (re)introdução do personagem, que ele continua temido, forte e mais determinado do que nunca a encontrar a mulher perfeita para gerar seu filho.
Fora da penitenciária, o maníaco das unhas grandes dá de cara com a realidade infernal do cotidiano brasileiro, aqui representada pela periferia da cidade de São Paulo: policiais despreparados, medo, insegurança, prostituição, extermínio de menores e outras mazelas. Ajudado por seu fiel servidor, o corcunda Bruno (Rui Resende), ele logo começa a arquitetar seus planos e rituais. Só que os vizinhos não vêem com bons olhos sua presença. E ao bater de frente com os métodos questionáveis de justiça da Polícia, Zé do Caixão chama para si a truculência de dois membros da corporação (Jece Valadão, em seu último trabalho, e Adriano Stuart). Para completar, aparece ainda um frade (Milhem Cortaz, de “Nossa vida não cabe num Opala”) que, por motivos muito pessoais, promete pôr fim à vida do autor daquelas atrocidades diabólicas. Está armado o festival de perseguições, torturas, sexo e sangue que encherá a tela até o último fotograma.Talvez o terror de Mojica não choque nem meta medo como fazia antigamente. Sem querer fazer comparações, mas as cenas com insetos e pessoas penduradas por ganchos presos à pele já foram repetidas à exaustão em longas recentes como “Jogos mortais (I, II, III e IV)” e “O massacre da serra elétrica”. No entanto, há outros momentos em “Encarnação...” que atestam a vitalidade do diretor, como aquela cena no purgatório, com a participação para lá de especial do teatrólogo Zé Celso Martinez Corrêa. Ou ainda a das vítimas (em preto-e-branco) que voltam para atormentar a mente do Zé do Caixão: além do contraste com o vermelho vivo que escorre em tantos enquadramentos, a presença desses personagens são uma espécie de reverência à trajetória do diretor. Sem dúvida alguma, uma sacada de mestre.
Se o filme não é repleto de efeitos especiais, como poderia se esperar de uma produção brasileira de quase 2 milhões de reais, foi decisão do próprio Mojica, por respeito às características e particularidades da sua obra. Mas quando eles aparecem, vêm para somar, como na chuva de sangue dentro de um barracão. Aliás, é inegável que “Encarnação...” impressiona muito pelas suas qualidades técnicas. E nesse quesito é indiscutível o grau de realismo que a belíssima fotografia de José Roberto Eliezer traz para a trama. Pontos também para a montagem de Paulo Sacramento - que dá agilidade e ritmo, elementos aqui indispensáveis para a história emplacar - e para a trilha sonora impactante assinada pelo Abujamra e o Márcio Nigro.
Agora, tem uma coisa que ficou a desejar: a busca da fêmea ideal para a procriação e propagação da herança do sangue demoníaco pedia mais atitude, digamos, sexual do Zé do Caixão, que se mostra muito passivo em todas as tomadas de acasalamento. Seria esse o desafio para os 72 anos do ator? Porque o diretor continua em forma: “Encarnação do demônio” foi convidado para participar da mostra “Hours Concours” da 65ª edição do prestigiado Festival Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza.

2 comentários:

Wallace Andrioli Guedes disse...

Hehe, Encarnação do Demônio é legal, assim como o Mojica ... esperava um pouco mais do filme em alguns aspectos, mas tem seus momentos memoráveis. Acho, por exemplo, a seqüência inicial, genial !

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Wallace,
sem dúvida, a sequência inicial é memorável mesmo e mostra muito do vigor e da criatividade da direção do Mojica.
Abração