setembro 12, 2008

"Olho de boi"

(Olho de boi, 2007 - Hermano Penna)
Por mais que as referências a “Édipo Rei”, de Sófocles, sejam gritantes, são o sertão e os sertanejos de Guimarães Rosa que estão no campo de visão do “Olho de boi”, do diretor Hermano Penna. O filme começa com o comunicado de uma revelação. Vemos a cena refletida no olhar de um bovino confinado. Corte para o animal entrando no corredor que o levará ao abate. O nervosismo do bicho parece revelar o conhecimento da sua sina, que ele encara com bravura, seguindo em frente, ao invés de empacar. Novo corte. Homem desce a marreta. Entra o som de um mugido, que se funde com o de uma trovoada. Escuridão na tela.
A seqüência seguinte já mostra dois vaqueiros cortando a noite sob uma chuva torrencial e buscando abrigo numa igreja abandonada. É ali, sob os escombros do que um dia foi um altar, que os homens começam a falar de fé, verdade, traição, mágoa, vingança e morte. Ainda que o cinema inteiro queira ouvir os detalhes da tal revelação anunciada nos primeiros minutos, é dos sentimentos, pesares, medos e (des)crenças de cada um que ficamos sabendo. Quanto mais eles conversam, mais o universo de Rosa nos vem à cabeça. A cena tem uma fotografia maravilhosa (e é um dos destaques do longa), revelando pouco a pouco os detalhes do ambiente, na medida exata em que os personagens vão acendo lamparinas e velas e jogando luz sobre seus pensamentos.
A câmera quase não se move: é importante registrar o olhar daqueles homens, a contração dos músculos faciais, as dores que as explosões de vozes e sentenças expõem. Aos poucos, o público fica sabendo quem eles são: Modesto e Cirineu, padrinho e afilhado, traído e delator, ateu e temente, igualmente cegos por causa das angústias que carregam. Enquanto um tateia os móveis e imagens do templo, o outro desfia suas mágoas. “Inimigo não trai, fica à espreita, esperando a hora. Só amigo trai”, diz Modesto. “Traição é morte que humilha”, completa. O vermezinho da vingança corroendo as entranhas de um homem desesperado, de um marido desconsolado. A infidelidade da esposa (Angelina Muniz) e a deslealdade do irmão (Cacá Amaral) comprimem seu coração e provocam uma tempestade de palavras que ora saem aos gritos,ora sussurradas. Dali até o momento da tocaia que deve por fim à vida do traidor, muitas confissões, de parte a parte, vão humilhar e provocar os dois vaqueiros. “Olho de boi” é um filme curto (72 minutos apenas), com elenco pequeno e pouquíssimos cenários. No entanto, as palavras são infinitas, os diálogos ininterruptos, as emoções crescentes e o resultado grandioso. É quase teatro. Os conflitos que vão atiçando os ânimos daqueles sertanejos acabam revelando-se mais intrigantes do que o desfecho daquela longa noite de espera. Sem falar que, aqui e ali (e por isso há que se assistir ao filme atento a todos os detalhes), são lançadas pistas sobre o que está por acontecer. Como na cena em que Cirineu é instigado pelo padrinho a falar alguma coisa para a imagem do Cristo com os olhos raspados que jaz na casa de Deus que lhes serve de abrigo . Suas (poucas) palavras têm endereço mais específico do que se imagina então. O fato é que, como o boi do início do filme, aqueles dois homens seguem resolutos no seu caminho de desvario e vingança. Ainda que em alguns momentos, as incertezas e a proximidade da morte queiram esfriar os ânimos, eles vão até o fim. Porque se a cruz que Modesto tem de carregar até o alvorecer é pesada, como confirmam seus lamentos, ela também é do afilhado, que está ali - como o Cirineu bíblico - para ajudar a levá-la.
Mas apesar de todo o mérito do roteiro (merecidamente premiado no Festival de Gramado), essa história não faria sentido sem a atuação de dois atores fabulosos. Genézio de Barros e Gustavo Machado (que também levou seu Kikito de Ouro) são os intérpretes perfeitos para encher de vida o texto primoroso do roteirista Marcos Cesana. Eles mergulham de tal maneira nos personagens, que as falas, resmungos e filosofices brejeiras soam absolutamente espontâneas e verdadeiras, como se Modesto e Cirineu existissem, fossem de carne-e-osso. Outro acerto é a concepção da trilha sonora, assinada pelo Duofel, formado pelos violonistas Fernando Melo e Luiz Bueno, que estão na estrada há mais de 30 anos e já percorreram todo o interior do país (sozinhos e acompanhando músicos como Zé Geraldo e Tetê Espíndola). Com um trabalho assim, consolidado e repleto da riqueza e diversidade cultural brasileira, compor as canções que embalam essa vendeta foi muito natural. Depois de assistirem ao filme com o diretor e o montador, eles gravaram as músicas ao vivo, como na época do cinema mudo, à medida em que iam vendo as cenas, praticamente sem edição, reforçando a atemporalidade e a indefinição espacial da trama.

16 comentários:

Alex Gonçalves disse...

Beleza?

Olha, fiquei antenado um pouco neste filme e ele recebeu grandes elogios de críticos especializados em filmes exibidos em circuitos alternativos, mas não tinha criado interesse em assisti-lo. Será que depois deste texto terei a oportunidade de um dia encontrá-lo no DVD? Espero que sim.

Abraços, Demas!

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Alex,
assisti-lo no circuito comercial vai ser difícil mesmo: a distribuição não está ajudando, né? Vou torcer para que ele chegue ao dvd.
Abração

Alex Gonçalves disse...

Demas, nem me fale! E essa última semana outro filme ao qual gostaria muito de ver passou em branco por aqui: "Violência Gratuita". Ao menos este eu consegui ver o original, rs.

Boa terça-feira.

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Alex,
sabe que não estou com muita vontade de ver essa nova "Violência gratuita" do Haneke não. Mesmíssima hsitória, filmada quadro-a-quadro pelo mesmo diretor. Sei não. Devo ficar mesmo com o original, rs.
Abração

Anônimo disse...

Demas, compreendo. Acho que o público pode usar "Psicose" como exemplo para saber o que se deve esperar ao ver uma refilmagem que copia praticamente 100% do filme original. Mas ainda assim quero poder presenciar uma experiência diferente com um mesmo material. E Naomi Watts ajuda muito! Abraço!

Wallace Andrioli Guedes disse...

Primeira crítica positiva que vejo desse filme ... talvez, se passar por aqui, dê uma conferida ...

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Alex,
mas em "Psicose" ainda tínhamos diretores distintos. Em "Violência gratuita", até a direção é a mesma: restam-nos as atuações mesmo.
Abração

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Wallace,
como toda obra, há quem não tenha gostado mesmo. Mas li muitas boas críticas a respeito. E pela minha nota, está escancarado o que achei do filme, né? Tomara que chegue aí para que você possa conferir.
Abração

Sam disse...

Caro Cine Dema(i)s,

O Keyzer Soze’s Place convida o moderador deste blogue a participar na votação dos Óscares de Marketing Cinematográfico, iniciativa que nomeará o melhor em publicidade de Cinema no ano de 2008.

A votação pode ser efectuada em http://sozekeyser.blogspot.com/2008/12/scares-de-marketing-cinematogrfico.html.

Desde já, apresento o meu profundo agradecimento na sua disponibilidade para participar nesta iniciativa.

Cumprimentos cinéfilos!

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Sam,
convite aceito.
Em breve passo por lá para votar.
Abraço e obrigado pela visita e pelo convite.

Alex Gonçalves disse...

Demas, quando você retorna? Estamos desde setembro órfãs de novas atualizações :(

Bom final de semana!

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Alex,
espero poder fazer mais e melhor por aqui em 2009. Por enquanto, estou de férias, curtindo a família no interior goiano, comendo muita pamonha, churrasco e pequi :) . Obrigado pelo estímulo.

Abração

Janaina disse...

Não assisti... mas me interessei. Vou aceitar a indicação.
Poxa... nem aqui você anda escrevendo?

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Para você ver como andam as coisas, Janaina ;)
Não tenho preferência pelos meus blogs: se abandono um, pode saber que o outro também estará às moscas. Mas como respondi lá no Buarqueando, estou reestruturando minha rotina para voltar a escrever aqui também, ok?
Beijo

Cadinho RoCo disse...

Deve ser um belo filme.
Cadinho RoCo

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Cadinho RoCo,
o filme é belo mesmo. E a sequência que se passa dentro da igreja (foto acima) é inesquecível, com interpretações fortes e seguras e uma fotografia de tirar o fôlegp.
Abração e obrigado pela visita.