maio 19, 2008

"Apenas uma vez"

(Once, 2006 - John Carney)
Na sua “Canção de protesto”, Caetano Veloso diz que “99 e um pouco mais por cento das músicas que existem são de amor”. Em “Apenas uma vez”, essa estatística chega a 100%. Isso mesmo: todas as canções do filme são de amor e não poderia ser diferente, uma vez que a proposta inicial do diretor e roteirista John Carney era fazer um longa-metragem onde as composições se encaixassem no roteiro para revelar as verdades dos seus personagens. Com isso, o público ganhou um musical que – se não possui o glamour associado ao gênero – tem uma trilha sonora arrebatadora, justamente por ser a alma da película.
Para conseguir realizar essa façanha com tamanho êxito, temos uma boa justificativa: foram chamados, para viver o casal de protagonistas, os músicos Glen Hansard e Markéta Irglová, que são responsáveis pela composição e/ou interpretação da maioria absoluta das canções ouvidas em “Apenas uma vez”. Ele já havia trabalhado com Alan Parker em “The Commitments – Loucos pela fama (1991)”e é vocalista da “The Frames”, banda de sucesso na Irlanda; ela – que tinha apenas 17 anos durante as gravações - é uma compositora e multiinstrumentista tcheca estreando como atriz. Na vida real, eles se conheceram quando Hansard fez uma viagem a Praga, onde tocaram juntos, o que rendeu a participação de Irglová no primeiro álbum solo dele e a indicação para interpretar a garota do filme.
Já em “Apenas uma vez”, o encontro se dá numa calçada de Dublin, onde uma jovem vendedora de flores – que aprendeu a tocar piano ainda pequena, incentivada pelo pai – é atraída pela apresentação de um cantor de rua. Imediatamente, uma afinidade se estabelece, até porque eles têm outra coisa em comum: o coração partido. É essa desilusão amorosa que alimenta as letras do músico. E é a intensidade dos sentimentos dele, revelada nas canções, que a pianista gostaria de ter encontrado no parceiro que a abandonou, quando ela resolveu deixar a República Tcheca para tentar a sorte na Irlanda. Está armado o cenário para que muitas emoções envolvam esses amantes abandonados.
Dali até o final do filme, as músicas se sucedem para revelar as histórias desses personagens, descrevendo seus medos e decepções, alegrias e sonhos, enquanto uma nova realidade vai sendo orquestrada por essa aproximação que promete mudar suas rotinas e vidas. Numa das cenas mais belas do longa, os dois vão até uma loja de instrumentos, onde ele mostra a letra de uma canção, seus acordes ao violão e a convida para acompanhá-lo no piano. É nesse momento que o público ouve “Falling slowly”, canção que levou o Oscar 2008. Impossível não se emocionar, o que acontece também durante a execução de “The hill”, composta pela garota e interpretada numa sala praticamente escura, como se assim ela pudesse ocultar o sofrimento que aquela canção carrega. O plano-sequência do final é igualmente espetacular: ah, se fosse possível decifrar aquele olhar atravessando a janela enquanto a câmera se distancia da cena...
Por representar mais da metade da duração do filme, a trilha sonora é, literalmente, a força-motriz de “Apenas uma vez”, uma produção de estrutura simples, baixo orçamento, com elenco pequeno e desconhecido. Ainda assim, John Carney reverteu a lógica, transformando pouco em muito, ao deixar que suas lentes registrassem uma história universal de descobertas, superação e gratidão, com um final tão delicado e verdadeiro quanto os sentimentos que transformaram dor e angústia em belíssimas canções.

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