A idéia de fazer um filme que explorasse os contrastes sociais do Rio de Janeiro nasceu em 1987, quando Breno Silveira era o câmera do documentário “Santa Marta: Duas semanas no morro”, de Eduardo Coutinho. Ele então quis comprar os direitos de “Cidade de Deus”, mas Paulo Lins já os havia vendido para Fernando Meirelles. Breno sugeriu ao autor que escrevesse uma outra história. Alguns anos depois, surgia o embrião de “Era uma vez...”, uma versão mais dura e violenta do que a que chegou às telas há duas semanas.
Era para ter sido a estréia de Breno Silveira na direção de um longa-metragem, mas a história de amor entre um garato sangue-bom do Morro do Cantagalo e uma patricinha da Avenida Vieira Souto, explorando a desigualdade social como obstáculo à união do casal, não entusiasmou os produtores e o diretor acabou debutando nas telonas com a biografia da dupla sertaneja Zezé di Camargo & Luciano, um estrondoso sucesso de bilheteria, o maior público pós-retomada do cinema nacional (1994), com mais de 5 milhões de espectadores. Esse número quebrou as resistências iniciais e abriu os cofres para que “Era uma vez...” saísse do papel. No entanto, repetir (ou ultrapassar) as marcas do primeiro filme será uma façanha. E a disputa começou com desvantagem para esse Romeu-e-Julieta carioca, que estreou em apenas 89 salas, contra as 351 à epoca do lançamento de “2 filhos de Francisco”.

Dé (Thiago Martins) é um morador do morro que trabalha num quiosque de cachorro-quente em Ipanema, localizado exatamente na frente do edifício em que mora Nina (Vitória Frate), por quem é platonicamente apaixonado, apesar dele ser invisível para a moça. Uma desilusão amorosa daqui, um certo atrevimento dali e os dois ficam juntos. Se o amor parece ser suficiente para transpor o abismo sociocultural que os separa, as diferenças apontam para o precipício. Um acordo entre traficantes e policiais corruptos expõe o flanco da triste e tão conhecida realidade brasileira e coloca os pombinhos numa arapuca. Só há chance de escapatória para os dois se a intolerância e o preconceito forem vencidos.
Além da violência, da pobreza, do tráfico e da corrupção, os rumos do romance de Dé e Nina também são influenciados por outras histórias de amor: a dos três irmãos, a da mãe favelada e o filho trabalhador, a do pai viúvo e a filha única. É essa teia de sentimentos que humaniza os personagens, não deixando que os rótulos de mocinho e vilão grudem definitivamente em qualquer um deles: o bem e o mal estão em todo mundo e fazem um rodízio à medida que os conflitos vão surgindo. Com certeza, esse é um dos grandes trunfos do roteiro, que consegue emocionar em muitos momentos, intercalando as belezas e as mazelas do Rio e traçando um panorama cruel e comum a qualquer metrópole do mundo.
Não há como negar que a atuação de Thiago Martins é a alma do filme. Seu personagem convence em todas as cenas, indo da delicadeza à ira com a mesma segurança. Isso prova que o jovem ator - que segue morando numa favela e é integrante do grupo “Nós do Morro” - estava certo ao batalhar pelo papel que o diretor se negava a entregar a ele, por considerá-lo galã demais (para quem não se lembra, ele participou de novelas globais como “Belíssima” e “Da cor do pecado”). Se o problema era esse, Thiago foi para o quarto teste de cabelo raspado, com a pele tostada de sol, a cara cheia de espinhas e deu no que deu. Bendita persistência! Outro destaque do elenco é Cyria Coentro. Com larga experiência no teatro e participação em novelas e minisséries, a atriz surpreende ao criar uma mãe que faz de tudo para manter os filhos no bom caminho, impregnando de verdade seu silêncio, suas explosões, seu amor e seu desespero.
O fato das filmagens terem sido realizadas totalmente em locação imprime mais veracidade ao que vemos. O que também pode ser dito sobre os cenários e figurinos, uma vez que a produção contou com a valiosa “consultoria” da comunidade, valendo-se de móveis e roupas dos próprios moradores. E o que dizer da fotografia? As imagens encantadoras de Ipanema feitas a partir das lajes do Cantagalo ilustram muito bem o contraste que o roteiro de Patrícia Andrade quis discutir, além de gerar cenas inesquecíveis, como aquela em que Nina compara as janelas dos barracos do Vidigal a um céu de estrelas ou uma outra em que Dé abre os braços, tendo o Morro Dois Irmãos ao fundo, numa alusão nítida ao Cristo Redentor. Por isso, apesar da fatalidade e do pessimismo reinantes na fábula de Breno Silveira sobre a Cidade Maravilhosa, “Era uma vez...” é, ainda assim, uma declaração de amor ao Rio de Janeiro. Que o digam as reticências do título que, somadas ao “final depois do final”, parecem instigar o povo brasileiro a escrever uma outra história.
8 comentários:
Ainda não tem data de estreia em Portugal...
The Nader,
a distribuição do filme por aqui não foi das maiores. Tem muita capital brasileira em que "Era uma vez..." não estreou ainda. Mas veja assim que pintar nos cinemas daí.
Abração e obrigado pela visita.
Não sou dos maiores fãs de 2 Filhos de Franscisco, Demas, embora ache um bom filme. E a depender dos comentários positivos que esse novo trabalho do Breno Silveira vem recebendo, dá muita vontade de ver, mesmo que à primeira vista o filme tem cara de ser um tanto piegas. Mas tem muita gente falando que o filme ganha pela simplicidade e verdade das emoções que trasnmite. Verei assim que puder. Mas esse ano tá difícil para chegar aqui os filmes brasileiros. Vi pouquíssemos.
Rafael,
veja sim. "Era uma vez..." é uma bela e bem contada história de amor com umas boas pitadas da violência e corrupção brasileiras.
Abração
Demas, eu gostei muito do filme, mas o final, por exemplo, não consigo engolir. Achei o filme emocionante, mas tenho problemas para aceitá-lo racionalmente dada a fragilidade do pacto de verossimilhança. To pensando ainda... Achei muito bom esse resgate da gênese do filme, não sabia dessas questões em relação ao Cidade de Deus. Abração!
Eduardo,
é inegável que o filme é muito bem feito, bem executado. E envolve na grande maioria das cenas. Passadas algumas semanas depois de tê-lo visto, decantada a emoção da primeira hora, continuo achando que Breno Silveira fez um grande filme. Talvez eu tirasse alguns décimos na cotação hoje. Mas gosto muito.
Abração
Quando assisti pela primeira vez odiei o final porém, quando vi pela segunda vez, não com menos emoção, conclui que Breno fez um excelente trabalho ao trazer para os nossos dias com muito realismo e sensibilidade um marco do romantismo. Quem ainda não viu vale a pena assistir, é de se emocionar.
É isso aí, Crika. Muito já se falou sobre esse final. Se bom ou ruim, o que interessa é que ele não macula tudo o que foi visto antes.
Abração e obrigado pela visita.
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